—————————————————————————————————————————————————————————————————

Capítulo 01 –  Um conto sombrio (1)

Tradutor: TiagoRK
Revisor: Mysphinx

—————————————————————————————————————————————————————————————————

 

A batalha se concluiu na terceira noite.

 

A chuva não mostrou sinal de que pararia. As gotas de chuva tocando a pele pareciam mais chicotadas do que apenas água.

 

”Cough… Cough…”

 

Sofrendo para recuperar seu fôlego, Ronan levantou sua cabeça. O uma vez caótico campo de batalha, agora mantinha-se silencioso com apenas o som da chuva cobrindo o ar.

 

Enquanto seu olhar se estendia, a paisagem em sua frente parecia com uma cena vinda do próprio inferno.

 

O terreno baldio que se estendia até o horizonte estava quase todo coberto por uma tonalidade avermelhada e carbonizada. Era a cor do sangue misturado com lama.

 

Sobre o chão pegajoso, havia fragmentos espalhados que outrora faziam parte do corpo humano. Poças que se formaram aqui e ali carregavam os cadáveres flutuantes daqueles que haviam sido despedaçados.

 

Exceto ele, não havia nenhum sinal de outro ser vivo em movimento. Enquanto ele limpava a lâmina nas roupas, uma voz ecoou vinda de trás.

 

“E pensar que teria um humano tão forte, incrível.”

 

Apesar da forte chuva, a voz era clara. Parecia como uma ressonância profunda de uma caverna com lava fluindo. Ronan virou seu corpo com uma expressão de repugnância.

 

”Você não está morto ainda?”

 

[É uma falha notável da parte de Ahaiyute.]

 

A cerca de cinco passos de distância, uma enorme figura de um humano se espalhou. Esse era o culpado por trás da carnificina. O gigante referia-se a si mesmo como Ahaiyute.

 

Com uma altura que passava facilmente de 4 metros, o gigante também tinha dois pares de asas em suas costas. Sua aparência lembrava o conceito dos anjos, frequentemente retratado na arte religiosa.

 

Ele tinha uma cabeça careca de formato oval com características faciais distintas. Seu torso musculoso e esbranquiçado estava repleto de cicatrizes profundas e longas.

 

O sangue azul escorrendo das feridas formou poças ao redor do centro do gigante.

 

[De fato. Ainda não.]

 

O punho de Ronan se fechou. Se fosse possível, ele teria despedaçado Ahaiyute com um simples pensamento, mas ele não tinha mais energia para isso.

 

Esse único ser vaporizou dez legiões do império.

 

Com cada agito de suas quatro asas, as tempestades se alastravam e, com cada golpe de sua lança forjada à luz, centenas de pessoas perdiam suas vidas. As vidas inocentes perdidas antes da batalha final eram incontáveis.

 

[De qualquer modo, meu fim está próximo. Ahaiyute foi derrotado, e logo eles retornarão para o abraço dEle.]

 

“Bem, boa viagem. Espero que você pise em merda de cachorro na saída. Seu lixo.”

 

Tunk!

 

Ronan pegou uma adaga quebrada e introduziu no peito do gigante. Apesar do ataque, o gigante não se levantou, indicando um provável ataque fatal. 

 

Ronan subiu no ombro do gigante. Enquanto vasculhava sua bolsa, ele murmurou e amaldiçoou baixinho.

 

“Ei, seu desgraçado.”

 

O cachimbo caro que ele comprou com muito dinheiro estava completamente quebrado. Ele jogou o cachimbo quebrado no rosto do gigante e se levantou.

 

“Sim, seus amigos, você sabe que eles estão mortos?”

 

[Amigos?]

 

“Sim, os caras que vieram com você.”

 

[Você está se referindo ao Nirvana e ao Duaaru?]

 

”Eu não sei seus nomes… Enfim, eles estão mortos”.

 

Há vinte dias, três gigantes desceram sobre a terra. O motivo permanece desconhecido.

 

Causaram estragos a tal ponto que o mapa do continente teve de ser redesenhado. Ahaiyute foi o último gigante restante.

“Um foi fritado vivo por um dragão vermelho de temperamento explosivo, e o outro foi selado para a eternidade por um velhote chamado Lorehon. Não sei qual era o objetivo de vocês, mas agora está tudo acabado.”

 

Ronan queria ver o rosto do gigante retorcido em desespero.

 

Então ele se absteve de mencionar que o Dragão Vermelho Navar-Dorje e sua tribo sofreram uma devastação semelhante à aniquilação mútua, ou a informação sobre o arquimago Lorehon sacrificando sua própria alma para servir como um condutor para um feitiço de selamento.

 

Porém a resposta que ele recebeu não correspondeu às suas expectativas.

 

[Que sorte.]

 

“O quê?”

 

[O fato de não haver mais pessoas fortes como você. Você não pode mais nos impedir.]

 

Ronan desembainhou lentamente sua espada. A ponta brilhante apontava para a garganta do gigante.

 

“Como você sabe disso?”

 

[Os filhos da Estrela compartilham seus sentidos uns com os outros.]

 

“Sério… Um insuportável de merda até o fim. O que você quer dizer com não sobrou ninguém forte?”

 

Eu ainda estou aqui.

 

Ronan não se incomodou em acrescentar tais palavras. Ele sabia que se lutasse contra essa monstruosidade novamente, poderia resolver o assunto em um dia. Porém Ahaiyute sabia de tudo.

 

[Eu sei que seu tempo está acabando.]

 

“Huh.”

 

[Aquele que é forte. Não esconda a verdade com truques superficiais.]

 

A espada tremeu ligeiramente, mas Ronan não deu sinais de hesitação. Ele empurrou a ponta da espada na garganta do gigante.

 

A pele dura rasgou quando o sangue azul jorrou. Ahaiyute continuou sem expressão.

 

[Estou muito feliz. Se… você tivesse percebido suas habilidades mais cedo e tivesse se esforçado ao máximo em seu treinamento, você teria se tornado um grande obstáculo para o nosso tão querido desejo…]

 

“Chega de conversa fiada. Está ficando cansativo.”

 

[Você é um humano excepcional. Tenha orgulho. A história do homem que sacudiu o céu e arrancou as estrelas poderia realmente transcender o horizonte do amanhã. No entanto…]

 

Seu cuspe foi como um corte.

 

[seu mundo finalmente será consumido pela luz das estrelas.]

 

Tunk!

 

A espada de Ronan foi balançada no formato de um arco.

 

“Se você está vivo, me responda! Tem alguém aqui?”

 

Ronan gritou, colocando a mão na boca. Não houve resposta.

 

Ahaiyute morreu sem reclamar. O sangue azul fluía como um rio, sem penetrar no solo. Ronan chutou o cadáver do gigante e se levantou.

 

Ele começou a vagar pelo campo de batalha, procurando por qualquer possível sobrevivente. A morte pairava onde quer que seu olhar alcançasse. Evitar os cadáveres caídos não era uma tarefa fácil.

 

Silêncio.

 

Examinando os rostos pálidos, Ronan cerrou os dentes. A maioria deles eram rostos familiares. Camaradas da unidade disciplinar que partilharam a vida e a morte. Ronan murmurou angustiado.

 

“Desgraçados tolos.”

 

A unidade disciplinar era uma força especial composta por criminosos. O ponto fraco de um exército que fez do patriotismo um dever. A epítome da inconsistência, mesmo em suas disciplinas.

 

Ele sabia por que esses homens, que geralmente reclamavam e fugiam, atacaram de cabeça tal monstro.

 

“Vocês pensaram que eram todos fortes só porque eu também era? Hein?”

 

Ahaiyute era formidável. Flechas que barravam o céu, as Lanças Sagradas dos autoproclamados cavaleiros e até mesmo Shullifen, o Santo da Espada, aclamado como o maior espadachim do império, não desferiram nenhum golpe crítico.

 

Somente a lâmina de Ronan pôde cortar a carne do gigante e retirar seu sangue. Até mesmo as espadas da unidade disciplinar, que eram incapazes de distinguir mana, muito menos de usar aura, foram estranhamente eficazes contra o gigante. Ninguém, nem mesmo Ronan, sabia o porquê.

 

No entanto, na batalha em que o destino do império estava em jogo, os status sociais perderam seu sentido. O Grande General descartou o plano original e formulou uma nova estratégia centrada em Ronan.

 

No fim, a unidade disciplinar tornou-se a força mais importante, guardada por dez legiões. Os desajustados arruaceiros, com pulmões cheios de vento, não hesitaram em transformar seus camaradas em heróis. Eles lutaram mesmo sendo dilacerados e despedaçados, provando, em última análise, que o julgamento do Grande General estava correto.

 

“Esses idiotas…”

 

Ronan arregalou seus olhos e fechou suavemente os olhos de seus companheiros caídos, um por um. Suas pálpebras, endurecidas como a casca de uma árvore velha, eram duras e rígidas. Quantas vezes ele repetiu essa tarefa?

 

“Hein?”

 

De repente, Ronan sentiu uma leve tontura subindo de seu plexo solar.

 

Tunk!

 

O chão em que ele estava deitado atingiu abruptamente sua bochecha. Sua visão girava como se ele estivesse bêbado. Ronan resmungou enquanto caía.

“Ah, agora não.”

 

Seu corpo não se movia. Mesmo que gotas de chuva que pareciam chicotes estivessem atingindo o lado de seu rosto que não estava preso ao chão, ele não sentiu nada.

 

As palavras de Ahaiyute sobre o tempo restante ecoaram em sua mente. Ele também sabia. Seu corpo desgastado atingiu seu limite há muito tempo.

 

Esse fenômeno foi uma espécie de declaração do que seu corpo não conseguia mais fazer. Estava dizendo que não iria mais colaborar com tipos como ele.

 

“Cough!”

 

Uma tosse inesperada ecoou. Foi uma tosse misturada com sangue carmesim. Em meio à tensão extrema, os sentidos que estavam entorpecidos lentamente começaram a retornar a Ronan. Liderar o ataque foi uma agonia.

 

“Vo… Você…”

 

Já que ele ia morrer de qualquer maneira, ele queria morrer olhando para o céu. Ronan exerceu toda a sua força para virar o corpo. O céu apareceu cruzado como uma fralda. Nem o sol, nem a lua, nem as estrelas eram visíveis. Apenas flashes ocasionais de relâmpagos azulados brilhavam através das nuvens barulhentas.

 

”Mesmo até o fim… isso é loucura.”

 

Sentindo-se ainda mais agitado, Ronan fechou os olhos. Agora, ele só queria morrer rapidamente. Os dias que ele viveu pareciam flutuar e balançar na escuridão.

 

[É realmente muita sorte nossa. Você desperdiçou seus talentos na obscuridade.]

 

Mais uma vez, essas palavras atrevidas passaram por sua mente. Elas eram irritantes, mas verdadeiras.

 

A maioria de suas memórias fluíam como uma corrente de momentos perdidos ou cenas em que ele perdia tempo como um tolo. O próprio Ronan desperdiçou seus talentos brilhantes, e mais ninguém.

 

“Eu deveria ter frequentado a academia também?”

 

Compreender seu talento foi rápido. Habilidade excepcional não era algo que pudesse ser escondido como pobreza ou uma tosse.

 

Sua única família, sua irmã, desejava sinceramente que ele recebesse uma educação adequada. Ela o criou com amor e carinho, dizendo que ele poderia, sem dúvida, se tornar uma grande pessoa.

 

Ronan não gostou disso e saiu de casa. Era irritante.

 

Nos três anos seguintes, ele vagou pelo continente como um cão sem dono. Tal como acontece com a maioria dos crimes, Ronan também acabou na unidade punitiva por causa de um momento de raiva. Mais precisamente, ele se entregou.

 

A vida militar revelou-se surpreendentemente tolerável. Em uma unidade que concedia a dispensa após sobreviver três anos, Ronan permaneceu sete.

 

Eles forneciam comida e abrigo contanto que ele empunhasse uma lâmina. Ele não tinha nenhum motivo convincente para sair. Embora várias ofertas de recrutamento tenham surgido durante seu caminho, ele rejeitou todas elas.

 

E esse foi o resultado.

 

A invasão dos gigantes levou tudo embora. Os patifes com quem lutou durante sete anos, sua irmã carinhosa, as nações e aldeias que encontrou em sua jornada— Tudo virou cinzas.

Se ele tivesse aprendido esgrima adequadamente e se dedicado ao treinamento, o resultado teria sido diferente? Ele poderia tê-los protegido?

 

Ele não sabia.

 

Era apenas uma indagação sem sentido.

 

Com os olhos fechados, Ronan relaxou o corpo. Ele sentiu sua alma deixando gradualmente seu corpo. Alguém disse que a morte nada mais é do que um sono profundo…

 

Sua mente…

 

Apagando…

 

Estúpido…

 

[Tem alguém… aí.]

 

Uma voz humana chegou a ele.

 

“Eu estou aqui!”

 

Ronan saltou de sua posição como se tivesse sido impulsionado. Lama respingou de suas costas e pescoço. Ele concentrou todos os seus sentidos na audição e apurou os ouvidos. Mais uma vez, a voz o alcançou.

 

[Estou ferida e não consigo me mover. Tem alguém aí.]

 

“Droga, estou aqui! Eu estou bem aqui!!”

Era a voz de uma mulher. A julgar pela forma como o som parecia ressoar diretamente em sua mente, e não através de seus ouvidos, ela provavelmente estava usando magia telepática.

 

“Continue falando! Eu estou indo!”

 

Ronan, que havia determinado bruscamente a direção, correu para frente. Apesar de bater o rosto na janela várias vezes enquanto suas pernas cediam, ele não se importava. A única coisa que importava era o fato de que poderia haver um sobrevivente.

 

[Aqui está…]

 

A voz ficou cada vez mais fraca. Seja qual for o motivo, estava claro que alguém estava desaparecendo. Ronan aumentou sua velocidade. Quaisquer vestígios de arrependimento ou ideais manchados foram deixados de lado.

 

Ele logo chegou à frente de um par de pedras inclinadas. As duas pedras ficavam de frente uma para a outra como um telhado, criando uma estrutura sob a qual ele poderia evitar a chuva.

 

”Ugh… Ugh…”

 

Cada expiração era acompanhada por sangue gotejando. Ronan limpou a boca com a manga da roupa e entrou no espaço entre as pedras. O dono da voz estava deitado lá dentro.

 

“Você é…”

 

E no momento em que viu o rosto dela, Ronan teve que engolir um suspiro que subiu até seu queixo.

 

“General.”

 

Um rosto familiar.

 

“Ronan…”

 

Lutando para levantar a cabeça, a mulher falou. Sua voz era rouca, sua garganta estava seca, mas sua antiga dignidade permanecia inabalável.

 

Uma estatura mais alta que a maioria dos generais, cabelos escuros cobertos de sangue e lama. Em contraste, sua pele era tão pálida que era quase totalmente branca.

 

Ronan repetiu as palavras como se estivesse sob algum tipo de encanto.

 

“Grande general Adeshan.”

 

Apesar de ter mirado nos ídolos de todos os soldados imperiais, Ronan não se curvou. Ele não tinha braço para poder saudá-la.